Com o icônico livro ‘Mad Maria’, escritor ajudou a projetar a história de Rondônia
O jovem escritor: Brasília, 1966. Foto: Divulgação
Por Júlio Olivar – [email protected]
A Amazônia é uma grande lenda até em sua essência etimológica. O escritor Márcio Souza conseguiu transcender este paradigma e conferir uma descrição realística — mesmo quando escreveu romance e teatro — à odisseia da colonização da região.
Algumas vezes, o romancista, ensaísta e historiador negou a liberação de seus livros para projetos no cinema porque queriam transformá-los em enredos que fugiam de sua matéria-prima: a história. “Não trato de lendas, a menos que estejam no contexto histórico. Minhas obras são muito bem fundamentadas neste rumo, mesmo eu sendo, essencialmente, um romancista”, frisava.
De fato, ele era um grande e metódico pesquisador; toda a sua escrita — artística ou acadêmica — percorreu o caminho da análise crítica inerente à sociologia e ao jornalismo. Mas também tinha a graça da ironia, decerto uma influência literária herdada de seu autor favorito: Machado de Assis.
Márcio Souza morreu nesta segunda-feira, 12 de agosto, em Manaus, aos 78 anos. Deixou como um legado extraordinário o fato de ter rompido a fronteira do regionalismo com suas histórias bem contadas que transitaram da Argentina, passando pela Europa e os Estados Unidos e até o Japão. Chefes de estado de vários países o chamaram pelo nome — até Fidel Castro se declarou leitor do amazonense e fã da obra ‘Galvez, Imperador do Acre’ — e a elite da literatura brasileira o reconhecia como um autor de escol; grande amigo de Lygia Fagundes Telles e João Ubaldo Ribeiro. Com eles, participou de conferências em muitos países e sempre recebeu críticas predominantemente positivas da imprensa.
Vinte e poucos anos
Estudou sociologia na USP e seu primeiro livro — ‘O mostrador de sombras’ — foi publicado quando ele tinha 21 anos de idade. Na mesma época esteve preso por subversão política e frequentou os porões do Doi-Codi (Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo (SP).
Um pouco antes ainda, quando adolescente, o precoce intelectual já atuava como crítico de cinema em um jornal no Amazonas. Foi, também, teatrólogo, cineasta — aos 24 anos dirigiu ‘A Selva’ — e no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2003, foi diretor da Funart (Fundação Nacional de Artes).
Márcio em Manaus onde nasceu e faleceu. Foto Divulgação
Uma promessa de criança
Além de peças de teatro e filmes, ele deixou 38 livros publicados. O trabalho literário mais conhecido de Souza refere-se à história de Rondônia. O livro de ficção ‘Mad Maria’, de 1980, relata a aventura da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
“Eu conheci a ferrovia ainda criança, viajando entre Porto Velho e Guajará-Mirim com o meu pai, que era sindicalista e vinha fazer contatos na região. Encantado com tudo aquilo, prometi: um dia escreverei a história da Madeira-Mamoré”, confidenciou Márcio em maio de 2024.
‘Mad Maria’ inspirou a minissérie homônima escrita por Benedito Ruy Barbosa que foi transmitida pela TV Globo em 2005. Trata-se de uma superprodução reexibida em dezenas de países, mostrando a loucura que consistiu a construção da ferrovia em plena selva entre 1907 e 1912, quando milhares de pessoas de vários países pereceram durante as obras.
Impacto
A morte de Márcio repercutiu no mundo literário. Várias academias de letras e instituições culturais ao redor do país manifestaram o pesar pela perda de um dos mais brilhantes intelectuais que personificou com toda a dignidade a Amazônia profunda, das raízes ameríndias às diversas fases da colonização da região, marcada por personagens fortes e atordoados. Ninguém conseguiu traduzir melhor a Amazônia do que Márcio Souza; ele, sim, uma lenda.
O presidente da Academia Rondoniense de Letras, Diogo Vasconcelos, emitiu uma Nota de Pesar, e lembrou: “Márcio Souza foi um dos maiores nomes da literatura da Amazônia e um dos escritores mais importantes para a história de Rondônia. Sua obra imortalizou a a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) no romance ‘Mad Maria’”.
Biografia inacabada
Primo em segundo grau do modernista Oswald de Andrade (a quem não conheceu) por parte de mãe e sobrinho-neto de Inglês de Souza (introdutor do naturalismo na literatura brasileira, no século 19), Márcio Souza sentiu, desde a primeira infância, que tinha o pendor para a escrita.
“Sou do tempo que saíamos do colégio, de fato, como leitores, porque nossos mestres nos orientavam neste rumo. Eu apreciava, ainda aos 14 anos, os livros de Jorge Amado. Também sempre tive curiosidade pelas línguas, e domino quatro idiomas. Tornar-se escritor não é resultado de vocação; é uma profissão; algo que você molda lendo, pesquisando, vivendo e observando”, analisou Márcio.
Repleto de memórias e casos interessantes como foram os diálogos com a ativista Patrícia Galvão, a Pagu, Márcio queria publicar um livro com sua biografia. Estava à procura de um autor para fazê-lo. “Eu não consigo falar sobre mim. Mas creio que minha trajetória pode resultar num livro desde que escrito na terceira pessoa”, disse, modesto.
Sobre o autor
Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.
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