A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas, na semana passada, fez aumentar, no Brasil, os rumores sobre uma possível “anistia” ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A anistia é a alternativa defendida por políticos ligados ao bolsonarismo para que o ex-presidente, que é aliado de Donald Trump, possa voltar a disputar eleições em 2026 e, quem sabe, voltar ao poder.
Este passo é imprescindível para o projeto de retorno de Bolsonaro ao comando do país, porque ele está inelegível até 2030 após duas condenações por crimes eleitorais em 2023.
Além disso, o ex-presidente enfrenta pelo menos três inquéritos junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que, caso venham a resultar em alguma condenação, também poderiam deixá-lo, novamente, inelegível.
Por ser considerada vital para o projeto bolsonarista, políticos ligados ao ex-presidente vêm tentando emplacar diversos projetos de lei que preveem algum tipo de anistia que, em tese, poderia beneficiar o ex-presidente.
Bolsonaro, aliás, fala abertamente em ser candidato em 2026, chegou a cogitar o ex-presidente Michel Temer (MDB) como vice — o que Temer disse ter considerado “esquisitíssimo” — e não esconde que deposita no Congresso Nacional, a expectativa de ver sua inelegibilidade revertida por meio de algum tipo de anistia.
“O Congresso pode (reverter sua inelegibilidade). O Congresso é o caminho para quase tudo”, disse Bolsonaro em entrevista recente ao jornal O Globo.
O tema, aliás, virou uma das principais moedas de troca da eleição à Presidência da Câmara dos Deputados.
Candidato indicado por Arthur Lira (PP-AL) para sucedê-lo no comando da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB) recebeu o apoio do PL de Bolsonaro e do PT do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
De um lado, o PL pedia a Lira que acelerasse a tramitação de um projeto de anistia. Do outro, o PT reivindicava que o projeto ficasse de fora da pauta da Câmara.
Mas enquanto políticos bolsonaristas defendem a medida, parlamentares petistas e especialistas em direito constitucional apontam que o caminho para uma eventual anistia de Bolsonaro não seria tão fácil assim.
Entre as principais dificuldades apontadas, está formar maioria para projetos tão polêmicos e a possibilidade real de que o STF venha a barrar uma lei que resultasse na anistia do ex-presidente.
Entenda a seguir quais são os três caminhos possíveis para anistiar Bolsonaro, segundo políticos governistas e de oposição e especialistas em direito com quem a reportagem conversou.
E por que o STF pode ser o “fiel da balança” nesta tentativa de reabilitar o ex-presidente para disputar eleições em 2026.
Caminho 1: recursos ao STF
A primeira rota para que Bolsonaro reverta sua inelegibilidade é aquela considerada mais curta: o caminho judicial.
Mesmo condenado pela mais alta Corte eleitoral, Bolsonaro ainda aguarda o julgamento de recursos de suas condenações levados ao STF.
Bolsonaro foi condenado a oito anos de inelegibilidade em dois processos separados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No primeiro, em junho do ano passado, foi condenado por abuso do poder político por ter convocado uma reunião com embaixadores de países estrangeiros em Brasília meses antes das eleições presidenciais e usado meios de comunicação governamentais para discursar contra a integridade do sistema eleitoral brasileiro.
O segundo, em outubro de 2023, foi condenado por abuso do poder político e econômico por ter usado recursos públicos durante as comemorações do Dia da Independência de 2022 para fazer campanha eleitoral.
Como na esfera eleitoral não haveria mais recursos disponíveis contra as condenações, a defesa de Bolsonaro recorreu ao STF para tentar reverter a inelegibilidade.
Em um dos recursos, a defesa alega que as condenações a Bolsonaro teriam violado princípios constitucionais como a inclusão de provas que, inicialmente, não estariam vinculadas aos processos eleitorais como a chamada “minuta do golpe”.
Esse termo é usado para descrever uma minuta de um decreto encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e que previa a supressão de direitos e a manutenção de Bolsonaro no poder mesmo após sua derrota eleitoral.
Parte dos recursos ainda não foi apreciada pelo Supremo.
Para o advogado Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral, o caminho jurídico seria a primeira opção de Bolsonaro para reverter sua inelegibilidade ao ganhar os recursos que tramitam no STF.
Ele explica que a possibilidade existe, ao menos em tese, por conta do número de ministros da Corte.
“No TSE, são sete ministros. No STF são 11. Desses, três (Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Kássio Nunes Marques) já votaram sobre o assunto no TSE, pois fazem parte da Corte Eleitoral”, diz Rollo à BBC News Brasil.
Moraes e Cármen Lúcia foram a favor da inelegibilidade de Bolsonaro. Nunes Marques, que foi indicado ao STF por Bolsonaro, votou contra.
“A tendência é que esses ministros mantenham suas posições. Faltam oito votos, e esse número é suficiente para a alteração da situação de inelegibilidade do presidente Bolsonaro.”
Ainda não há data para o julgamento dos recursos movidos pela defesa do ex-presidente.
Caminho 2: alteração na Lei da Ficha Limpa
O segundo caminho trilhado pelos bolsonaristas é uma alteração na Lei da Ficha Limpa.
A lei, aprovada em 2010, determina, entre outras coisas, a inelegibilidade de políticos que tenham sido condenados por órgãos colegiados, como o TSE.
Mas alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional preveem mudanças.
Um deles, que tramita no Senado, de autoria da deputada federal Daniela Cunha (MDB-RJ), filha do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (Republicanos-RJ), propõe que a inelegibilidade só poderia ser aplicada nos casos em que fique comprovada a ocorrência de comportamentos “graves que possam resultar na cassação” do político.
Este ponto poderia, em tese, favorecer Bolsonaro, porque ele não teve o seu mandato cassado, uma vez que ele já havia perdido as eleições. Desta forma, a pena de inelegibilidade não poderia ser aplicada a ele.
A medida vem sendo defendida por políticos à esquerda e à direita, uma vez que poderia beneficiar não apenas Bolsonaro, mas condenados de outros partidos que poderiam ter suas inelegibilidades revertidas também.
O projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em agosto, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), determinou que ele só seria votado após as eleições municipais.
Como já foi aprovado na Câmara, se o Senado referendar o projeto, a mudança vai à sanção presidencial.
A possibilidade de que a mudança possa ser aprovada é alvo de críticas de entidades que atuam no combate à corrupção.
Em agosto, a organização não governamental Transparência Internacional e a Associação Brasileira de Eleitoralistas (ABRE) divulgaram notas contrárias às mudanças.
“A medida enfraquece o sistema democrático a partir da relativização de normas voltadas justamente à garantia de sua rigidez, mediante o afastamento de personagens que já se mostraram objetivamente indignos de representar o eleitor brasileiro, por período proporcional à seriedade das irregularidades perpetradas”, diz uma nota divulgada pela Rede de Advocacy Colaborativo (RAC), uma entidade da qual a Transparência Internacional faz parte.
Rollo, contudo, avalia que Bolsonaro teria dificuldades em ser efetivamente beneficiado pela mudança caso ela fosse aprovada pelo Congresso, porque, em geral, uma vez aprovadas, os efeitos de uma lei não retroagem para valer em casos que já foram julgados.
“Ainda que o caso de Bolsonaro não tenha havido trânsito em julgado (ainda há recursos tramitando no STF), esta vai ser a primeira questão a ser enfrentada”, afirma o advogado.
Rota 3: anistia a crimes de 8 de janeiro
A terceira rota tentada pelos bolsonaristas é a que mais vem causando ruído: uma lei prevendo anistia aos condenados por crimes cometidos em conexão com os atos de 8 de janeiro.
O projeto que mais avançou até o momento é o que foi proposto em 2022 pelo então deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO).
O projeto tramitou na CCJ da Câmara entre 2023 e 2024, mas não chegou a ser votado. O relatório elaborado pelo deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE) concede aos envolvidos no episódio:
- perdão por crimes previstos no Código Penal ligados às manifestações;
- manutenção dos direitos políticos;
- cancelamento de multas eventualmente aplicadas pela Justiça;
- revogação de medidas que limitem a liberdade de expressão dos envolvidos em meios de comunicação e em redes sociais;
- validade das medidas a todos os que teriam participado dos atos antes ou depois de 8 de janeiro.
Para a oposição, liderada pelos bolsonaristas, o projeto é considerado vital tanto como um aceno à sua militância quanto como uma espécie de “vacina” contra uma eventual condenação de Bolsonaro ou outros políticos do seu grupo por crimes supostamente cometidos em torno dos atos de 8 de janeiro.
Uma condenação também geraria, em tese, uma nova inelegibilidade contra Bolsonaro.
O ex-presidente ainda não é réu em nenhum processo sobre os atos de 8 de janeiro, mas é investigado em inquéritos no STF que apuram a suposta incitação do ex-presidente aos atos.
Também apura-se se ele teve alguma participação na elaboração da minuta golpista a ser posta em prática após sua derrota em 2022. Há expectativa de que este inquérito seja finalizado até o final deste ano.
Bolsonaro e sua defesa vêm negando qualquer envolvimento nos crimes investigados.
O projeto colocou, novamente, PL e PT em lados opostos e virou um dos pontos mais importantes da sucessão de Lira na Câmara.
Para obter o apoio dos dois principais partidos da Casa, Lira fez acordos com as legendas. De um lado, tirou o projeto de lei da CCJ, o que paralisou sua tramitação por enquanto, atendendo aos petistas.
De outro, prometeu criar uma comissão especial para apreciar o projeto, mantendo uma eventual votação da matéria no ar, como queriam os bolsonaristas.
Um parlamentar do PT com quem a BBC News Brasil conversou em caráter reservado disse que, à medida que o PT não tem força para impedir uma vitória de Motta, a alternativa foi tentar negociar algum tipo de suspensão da tramitação da proposta de anistia na esperança de que, uma vez eleito, Motta possa cumprir sua parte do trato.
Para o deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP), o cenário é diferente. Ele aposta que nem Lira e nem Motta, caso eleito, colocarão o projeto de anistia para ser votado. Ainda que isso acontecesse, ele aposta que não haverá clima para aprovação.
“Na hora do vamos ver, quem é que vai colocar o seu dedo numa anistia a quem foi condenado por aquilo tudo que aconteceu?”, diz Tatto.
“Além disso, em 2025, a pauta não vai ser essa. Quanto mais o tempo passa, o Bolsonaro vai desidratando.”
Já o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (RJ), defende a aprovação da anistia.
“A anistia é importante para o país e para a nossa pacificação para superarmos mais uma página negra do nosso passado, zerando o jogo e olhando para o futuro da nossa democracia”, diz Portinho.
O fiel da balança: STF
Independente da rota escolhida pelos bolsonaristas para reverter a inelegibilidade do ex-presidente, especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o STF deverá ser o “fiel da balança”.
No caso dos recursos judiciais ainda pendentes sobre a condenação no TSE, vai caber ao STF decidir.
O professor de Direito Penal Davi Tangerino explica que, em princípio, não haveria nenhum óbice legislativo ou jurídico para que o Congresso Nacional aprovasse uma anistia para os envolvidos nos crimes de 8 de janeiro.
Isso porque a Constituição só veda anistia para crimes considerados hediondos, o que, até agora, não tem sido o caso das condenações do caso.
Ele diz, no entanto, que nos casos em que os bolsonaristas tentam promover mudanças na lei que poderiam beneficiar o ex-presidente, o entendimento é de que o STF também poderá ter a palavra final, porque poderá ter de julgar se uma eventual anistia aprovada pelo Congresso é ou não constitucional.
“Anistia é uma lei como outra qualquer e, portanto, está sujeita ao controle de constitucionalidade feito pelo STF”, diz Tangerino.
“Como qualquer outra lei, caberá ao Supremo dizer se ela atende ou não aos requisitos de constitucionalidade.”
Rollo tem um entendimento semelhante: “Precisamos saber exatamente como seria o texto final dessa lei, caso aprovada. Mesmo assim, vejo dificuldade para que essa anistia passe pelo STF. O Supremo poderia entender que essa anistia seria uma invasão da competência de poderes”.
Tangerino concorda que o STF poderia dizer que essa lei de anistia é inconstitucional “alegando, entre outras coisas, que ela seria uma afronta à separação de poderes e que ela não seria aplicável uma vez que não estaríamos falando de uma transição de regime e de necessidade de pacificação social como aconteceu em países que saíram de ditaduras rumo a democracias”.
Portinho, no entanto, diz esperar que o STF não se intrometa caso a anistia seja aprovada.
“Esse embate com o STF terá uma solução em algum momento de uma forma ou de outra. Já passou da hora do Judiciário respeitar o Legislativo”, diz o senador.
“A gente espera que o Judiciário compreenda a nossa função que é aprovar as pautas que sejam do nosso interesse e o Judiciário deve se conformar porque esse é o papel da democracia.” (BBC)