Ministério da Saúde já sinaliza que pode deixar imunizante produzido pelo Instituto Butantan de fora do Programa Nacional de Imunizações
Primeira vacina contra Covid-19 aplicada no Brasil, a Coronavac pode estar com os dias contados para deixar de ser usada no Programa Nacional de Imunizações (PNI). O imunizante ainda não obteve registro sanitário na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — é aplicado sob autorização temporária de uso emergencial desde janeiro.
Além disso, o Instituto Butantan está prestes a concluir o segundo contrato com o Ministério da Saúde e não há tratativas para compras futuras. Já foram entregues 92,8 milhões de doses. Outros 7,2 milhões devem ser enviados ao governo federal até o fim deste mês.
A sinalização de que a Coronavac corre o risco de não ser mais usada veio a partir do próprio ministério nos últimos dias. Primeiro, a pasta não incluiu a vacina nas que podem ser aplicadas como reforço ou terceira dose: preferencialmente Pfizer/BioNTech, mas, na ausência, também são permitidas AstraZeneca/Fiocruz ou Janssen.
A decisão não foi bem-recebida no Instituto Butantan. O diretor do centro de pesquisa, Dimas Covas, afirmou em entrevista que o governo federal tem agido para “descaracterizar e descredenciar” a CoronaVac.
Depois, em entrevista ao R7, na quarta-feira (1º), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi ainda mais enfático ao dizer que nenhuma vacina sem registro definitivo na Anvisa vai continuar no PNI (Programa Nacional de Imunizações) após o período de emergência de saúde pública, em vigor por meio de um decreto de 6 de fevereiro de 2020.
Atualmente, apenas Pfizer e AstraZeneca possuem registro sanitário na Anvisa. CoronaVac e Janssen estão autorizadas para uso emergencial, o que, segundo Queiroga, limita estes produtos ao período em que ainda houver um “caráter emergencial” da pandemia.
“Essas vacinas que têm registro emergencial são usadas nesse momento porque vivemos uma emergência sanitária e as que possuem registro permanente não são suficientes para suprir as necessidades do nosso sistema. […] Cessado o caráter emergencial, esse registro provisório não vai servir mais como ingresso para o sistema de saúde brasileiro.”
Baixa eficácia em idosos e imunocomprometidos
O Ministério da Saúde anunciou recentemente a aplicação de uma dose de reforço em idosos vacinados há mais de seis meses. 70% deles receberam CoronaVac. Também será aplicada uma terceira dose em pessoas imunocomprometidas, como transplantados, pacientes oncológicos, entre outros.
A decisão ocorreu no momento em que estados como São Paulo e Rio de Janeiro observavam uma interrupção da curva de queda de internações de idosos.
Estudos, como um conduzido pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), também apontavam para uma menor proteção contra mortes em idosos que receberam a CoronaVac. O médico Renato Kfouri, membro da diretoria da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) e da Câmara Técnica do PNI (Programa Nacional de Imunizações), ressalta que já ficou claro que a CoronaVac não é a vacina ideal para idosos e imunocomprometidos.
Mas, segundo ele, isso não a exclui totalmente do PNI, já que outros grupos poderiam se beneficiar, como crianças e adolescentes. “Para crianças, ainda é uma incógnita, porque essas vacinas ainda estão sendo estudadas. A Coronavac já tem dados preliminares. Dizer que não vamos mais usar Coronavac, é impossível hoje fazer uma previsão como essa. Talvez não use mais nos idosos e use nas crianças. Eu acho que é bem possível que tenhamos espaço para a Coronavac para crianças e adolescentes. São vacinas de uma plataforma extremamente segura.”
Em 18 de agosto, a Diretoria Colegiada da Anvisa rejeitou por unanimidade um pedido do Instituto Butantan para estender a autorização de uso emergencial da CoronaVac para o público com 3 anos ou mais.
A agência entendeu que o estudo apresentado era insuficiente. “Se faz necessária a condução de um estudo clínico de fase 3 com um número robusto de participantes […] É necessário gerar mais dados para que se possa afirmar a eficácia e a segurança da vacina na população pediátrica”, justificou a relatora do processo, a diretora Meiruze Freitas.
Registro sanitário
A ausência do registro sanitário na Anvisa frustraria os planos do Instituto Butantan de vender a Coronavac aos estados no futuro. Uma vez revogado o decreto de emergência sanitária da pandemia, a vacina só poderia ser usada novamente quando obtivesse o registro da agência reguladora.
Até hoje o Instituto Butantan não apresentou à Anvisa dados da imunogenicidade da CoronaVac. Estas informações demonstram a capacidade do imunizante de estimular a produção de anticorpos no organismo dos vacinados e por quanto tempo eles permanecem ativos.
A Anvisa condicionou a aprovação de uso emergencial da CoronaVac, em janeiro, à assinatura de um termo por parte do Butantan em que o instituto se comprometeu a apresentar os dados de imunogenicidade.
“A questão do registro definitivo é importante. Tem que saber o que a Anvisa está pedindo, o que o Butantan não está entregando e por que não está entregando. Tem um pré-print do ProfisCov, que é o estudo de licenciamento da CoronaVac, que até hoje não foi publicado. Deve estar sendo revisado por alguma revista aí, mas até hoje não aceitaram para publicação, o que cria também um cenário de desconfiança em relação a alguns detalhes que podem ser, talvez, os mesmos que a Anvisa esteja cobrando”, observa Kfouri.
Questionado sobre o motivo por não ter pedido o registro sanitário à Anvisa até agora, o Instituto Butantan disse apenas que “preza pelo diálogo e mantém canal aberto” com o órgão regulador. Acrescentou também que “os dados do estudo de imunogenicidade da CoronaVac ainda não foram entregues na sua totalidade à agência por conta de divergências no método de análise”.
As duas vacinas que estão garantidas no PNI, caso seja mantida a exigência de registro sanitário, devem ter produção nacional no ano que vem.
O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fiocruz, está em processo de validação para poder fabricar o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) da vacina da AstraZeneca. Quando concluída esta etapa, a fábrica não dependerá mais da importação da matéria-prima, o que deve ocorrer ainda neste ano.
Já a vacina da Pfizer/BioNTech será fabricada pela iniciativa privada, após um acordo com a Eurofarma. A previsão é de até 100 milhões de doses por ano. O Butantan está ampliando o parque industrial para a produção da CoronaVac, obra que deve ficar pronta no ano que vem. Desse modo também não precisará mais importar IFA.
“A produção nacional que se vislumbra […] nos dá uma tranquilidade no longo e médio prazos de uma autossuficiência de produção, e de a gente poder fazer em 2022 o que a gente não fez neste ano, de customizar a indicação das vacinas [de acordo com o grupo]”, ressalta Kfouri.
O médico lembra que neste ano as vacinas foram aplicadas nos grupos mais vulneráveis conforme chegavam, e que “não necessariamente fizemos as melhores escolhas”, mas era o que havia disponível. “Ano que vem essas lições aprendidas talvez se traduzam em um cardápio mais amplo, direcionando vacinas para grupos específicos.”
Para o especialista, também é preciso levar em conta uma possível necessidade de atualização das fórmulas das vacinas diante das variantes coronavírus que surgiram — todos os imunizantes em uso hoje são feitos a partir da cepa original, identificada em Wuhan (China).
“Estamos em um terreno ainda de muitas incertezas. Não dá para planejar o ano que vem sem saber quem vai precisar vacinar, com qual vacina, a quantidade, a formulação. Não é tão simples assim o raciocínio. Se acharmos que só precisa uma dose para os mais vulneráveis, sem dúvidas que precisaremos de muito menos vacina”, finaliza.