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4 de dezembro de 2024 – 17:16

OAB, 50 ANOS – Débeis mentais eram presos e jagunços soltos

Tribunal de Ética e Disciplina preenche atualmente a enorme lacuna que havia no passado da Seccional

Como se fossem normais, a lei do mais forte, o faroeste e a maldade imperavam no antigo Território Federal de Rondônia. Raras eram as denúncias de abuso de autoridade. Quando havia, eram vistas como estorvo ao coletivo da mediocridade, da desassistência jurídica. Sem cobranças ou intervenções de advogados, erros mazelas persistiam sem freio. Cadeias precaríssimas abrigavam presos com doenças venéreas e deficientes mentais.

Em Vilhena, na divisa com Mato Grosso, funcionavam 140 serrarias, enquanto Ji-Paraná movimentava madeira bruta em 90. Política preservacionista? Nenhuma. Controle? Nenhum.

O antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), hoje Ibama, existia, mas era impotente diante do crime florestal: para dar lugar a pastagem, castanhais e seringais inteiros foram destruídos. Só nos anos 1980 Rondônia conheceu um zoneamento agrícola.

Em 1977, 55 milhões de habitantes formavam uma população de migrantes. Sem encontrar emprego em seus municípios de origem, 11,5 milhões de famílias de trabalhadores agrícolas mudavam de lugar a enormes distâncias de onde haviam nascido.

O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1970 havia constatado, em 1970, a existência de 30 milhões de migrantes no País. Desses, 11 milhões viviam nas regiões metropolitanas e a maioria, 70%, estava concentrada na Grande São Paulo e no Rio de Janeiro.

O IBGE deixava de considerar em seus levantamentos o tipo de migração mais comum no Brasil: as pessoas que saem da área rural em direção às cidades de um mesmo município.

Antes das grandes levas de migrantes rumo à Amazônia Brasileira, o extinto Território Federal de Rondônia começava a acomodar a duras penas aqueles que para cá se dirigiram sem assistências técnica, médica, ambiental e jurídica.

1977 – Clamor local

Reunida em Ji-Paraná, a 367 quilômetros de Porto Velho, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lamentava a “clamorosa situação dos índios, lavradores e seringueiros – aqueles destituídos das terras que por direito primeiro lhes caberiam, expulsos e humilhados, desintegrados de seus valores e costumes por uma política oficial que privilegiava interesses de grupos econômicos nacionais e estrangeiros.”

Padres, bispos, pastores evangélicos, técnicos [inclusive do Incra], sociólogos e jornalistas já sabiam que os “fatores de expulsão” que ameaçavam 11,5 milhões de famílias agrícolas ocorriam basicamente por dois motivos: necessidade de maior produtividade com a utilização de moderna tecnologia [o agro “tech e pop” de hoje] no lugar da mão de obra tradicional; e pressão da população para o aproveitamento de áreas cultiváveis como pela monopolização de grande parte dessa terra por grandes proprietários.

1977 – Situação fundiária olhada pelo Banco Mundial

Houve um clamor nacional pela reforma agrária, ao qual somava-se a preocupação do então presidente do Banco Mundial, Robert MacNamara.

Robert Mac Namara: o Banco Mundial de olho em Rondônia, em 1977

No início dos anos 1980 esse banco financiaria o Programa de Desenvolvimento Integrado do Noroeste Brasileiro [Polonoroeste], cujos objetivos foram a) Integrar as regiões marginais da economia nacional; b) Assegurar o povoamento ordenado; c) Aumentar a produtividade, renda, saúde e bem-estar social dos migrantes; d) Proteger as comunidades indígenas, os recursos da terra e do ambiente.

Mac Namara já dava pitacos na situação fundiária brasileira e defendia o combate à pobreza ao qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva busca dar continuidade. O problema fundiário deveria ser solucionado, constatava o então presidente do Banco do Brasil, Oswaldo Collin.

Sem Justiça, grilagem prospera

Sem Justiça, sem juízes na Capital, sem autonomia das cidades interioranas, o Incra vergava-se a grupos que se achavam donos das terras: Clodoaldo de Almeida, grupo Calama, Fernando Iberê, Gainsa-Arantes, Goes, José Milton de Andrade Rios, Marcolino, entre outros.

Ocorriam absurdos: o comando da Polícia Militar recebia em 1977 determinação judicial para despejar sete famílias e aumentava esse número em dez vezes. E ficava por isso mesmo. Não seria surpresa a ação de religiosos e lideranças rurais na ocupação de terras no interior da Gleba Corumbiara, em São Felipe e na Zona da Mata – tudo tinha consequências.

No caso de José Marcolino Sobrinho, o Zuca, até que deu certo a intervenção do Incra. O fazendeiro chegava a Rondônia procedente de Mirante do Paranapanema (SP).

Zuca teimava em ampliar posse, mas foi orientado pela Coordenadoria Regional do Incra a não brigar mais

Nem o deputado Santana conhecia a realidade do aspirante a latifundiário que combatia em seus discursos. “Seu Zuca teimava em aumentar suas posses, até que nós [o Incra] fomos lá fazer a medição, e na presença dele orientamos e aconselhamos: o senhor passou mesmo dos limites, até aqui as terras são suas, dali para a frente não”, conta o advogado Amadeu Machado.

Em 1983 Zuca fora eleito vice-presidente da Assembleia Constituinte do Estado de Rondônia.

A especulação imobiliária crescia ao longo da BR-364 em áreas de antigos seringais. E da mesma forma que havia conluio entre advogados e policiais em Porto Velho, no interior o jaguncismo a serviço de especuladores tinha vistas grossas do Incra e do Governo do Território.

“Se ainda estiverem vivos, vamos acabar de matar”

O vereador João Gonzaga (MDB) pagava suas próprias passagens de ônibus para viajar de Cacoal a Porto Velho, onde participava semanalmente nas sessões da Câmara.

Quando assassinaram o colono Pedro Pereira, ele discursava: “(…) Imaginem os senhores que nas ‘datas’ [lotes de terra] são encontrados corpos de pessoas baleadas; nos hospitais ouvimos que, pelo telefone, pistoleiros perguntavam às enfermeiras se as pessoas baleadas ainda estavam vivas, porque se não tivessem morrido, eles iriam acabar de matar; e para a nossa surpresa isso aconteceu, pois o Hospital São Luís foi invadido por pistoleiros e eles mataram os enfermos em recuperação.”

“Ninguém tem segurança de vida, daqui a pouco ninguém mais quer residir em Cacoal; pior é que as autoridades ficam indiferentes a esses absurdos” – protestava Gonzaga.

Oito assassinatos em média, a cada 30 dias

Nas edições de 24 e 25 e maio de 1977 o jornal O Globo denunciava alguns horrores: “(…) Por um preço que varia entre 500 cruzeiros e 5 mil cruzeiros, assassinos de aluguel que perambulam pelos oito povoados ao longo da BR-364, em Rondônia, matam qualquer pessoa num prazo de uma semana, “limpam áreas” – expulsando colonos honestos – e espancam famílias para afugentá-las de terras eventualmente em litígio.

Despreparada e com falta de pessoal – está com menos de 50% do seu efetivo – a PM não tem condições de reprimir a onda de crimes ou reprimir localizar os assassinos, para entregá-los à Justiça. Nos últimos cinco anos, segundo fontes da SSP, ocorreram 480 crimes praticados por pistoleiros de aluguel, na média de oito a cada 30 dias.

Doenças e doentes mentais nas celas

A promotora de Justiça Sara de Souza Lima surpreendia-se ao apurar a situação dos presídios territoriais. Não havia cadeias de verdade, mas prédios que abrigavam cubículos sem qualquer condição para se ter uma pessoa presa.

Desafetos brigaram na cadeia de Vila Rondônia, e um deles, Carlos Coimbra, fora atacado lá dentro. O documento da promotora, verbis:

“(…) É um prédio em construção desde maio de 1976, sem esgoto nem canalização de água e esgoto [as quatro demais estão ocupadas com material de construção]; em uma delas há um débil mental carente de assistência médica e nenhum crime cometeu.

Na outra, que mede 3,60m x 7,80m, achavam-se depositados 19 presos, dentre eles, dois alienados mentais, dois com doenças venéreas, um ferido e um tuberculoso.

Dadas as condições fétidas do local e o quadro dantesco apresentado, há apenas alguns exemplos colhidos: Miguel Timóteo de Almeida está há 15 dias com doença venérea, sem tratamento; Aguinaldo Soares Leite, acidentado, idem; Antonio Salvarez Brejinate, tuberculoso, com ficha no Abrigo Santa Clara.”

Os presos informaram que estão passando fome, e o próprio Sr. Delegado de Polícia confirmou que a comida é insuficiente e que a PM é quem fornece uma base de 50% necessário para o consumo diário.

Numa única cela: dia 20 de janeiro, 22 presos; dia 23 de janeiro, 28 presos; dia 8 de fevereiro, 19 presos; 24 de fevereiro, 24 presos.

Soltos por excesso de prazo sem julgamento

Chefes de pistoleiros circulavam impunemente. A mando de Eduardo Barroso, matavam Alcidemiro Martins da Costa e Francisco Moreira da Silva, mas os executores foram presos e depois soltos por excesso de prazo, sem o devido julgamento, em rumoroso processo na Justiça.

Na Câmara dos Deputados, o advogado e deputado federal Jerônimo Santana (MDB-RO) mencionava o Processo PG-9948/74 – Procuradoria Geral da Justiça do DF – para fazer ver ao Ministério Público a necessidade de o órgão agir contra grileiros e chefes de pistoleiros.

E nominava um por um: Benigno pernambucano, ou Benigão, autor de pelo menos 20 assassinatos; João Dias, solto, apesar de mais de 30 crimes cometidos na região; Norival Félix de Almeida, tido como chefe do sindicato do crime em Vila Rondônia; Gerson, autor de assassinatos, circulava pelo Rio Urupá; “Careca”, Daniel, Baiano e Barbosa, todos com mais de dez crimes a serviço da Colonizadora Calama.

Delegados omissos colaboravam

Em 1977 Santana advertia na CPI da Terra, na Câmara dos Deputados: “Pouquíssimos são processados criminalmente. A maioria dos crimes praticados por jagunços de grileiros de Ariquemes, Cacoal, Pimenta Bueno, Vilhena e Vila Rondônia nem sequer é objeto de inquéritos, e desses crimes participam, muitas vezes, os delegados locais, em missão de apoio a pistoleiros.’

Delegados que não eram processados. “Tanto a Justiça do Território quanto a SSP empregam a tática do avestruz, muito mais cômoda”, suspeitava.

“Sintomática, pelo envolvimento e comprometimento, a posição de juízes temporários de Porto Velho, recusando-se a receber a denúncia contra o comandante da PM, coronel Ivo Célio, por abuso de autoridade”, queixava-se Santana.

Naquele período, a Justiça tinha conhecimento do sindicato de crimes da pistolagem, mas não agia. O delegado de polícia Ary Agra respondia processo-crime por abuso de autoridade; seus subordinados eram denunciados pela “prestação de serviços à grilagem de terras.”

Estimava-se que de cada cem pistoleiros, a maioria vinda de outros estados, um era processado. Mesmo assim, dificilmente apareciam os mandantes dos crimes.

Rondônia vivia o período de farsa em processos dessa natureza. Era cômodo não mexer com o poder da grilagem.

“Como ignorar o clamor público de Vila Rondônia de que José Milton, Rios, Walmar Meira e o grupo Calama mantêm assalariados diversos pistoleiros na região? Será que só a Justiça ignora esses fatos?” – questionava Santana.

Naquela ocasião José Milton, já conhecido no Incra, fora denunciado por manter com salário de 1.200 cruzeiros por mês os seguintes jagunços: Baianão, Chico preto, João mineiro, Joaquinzinho, José Cipó, e outros.

A CPI da Terra ficaria sabendo que alguns grileiros mantinham arsenais de armas para perseguir homens e mulheres até que abandonassem a terra e as benfeitorias. “A polícia sabia disso, quando participava do apoio aos jagunços, mas não instaurava inquéritos sobre o seu próprio envolvimento nos crimes”, protestava Santana.

Segundo o parlamentar, o procurador do Incra, José Sobral Filho, frequentava a residência de José Milton e fora o autor da ação de despejo contra colonos do Projeto Burareiro em Ariquemes.

“Não se pode acreditar que também a Justiça do Território se descaracterizou ao ponto de compactuar com tantos crimes; a Corregedoria de Justiça do TJDF e Territórios não pode se preocupar apenas em enviar elementos seus protegidos para ocupar cartórios em Porto Velho, e de lá trazerem malas cheias de dinheiro” – o deputado punha os dedos na ferida.

Na CPI da Terra, Santana sugeria à Inspetoria Geral da PM [comandada por general de Exército] apurar a conduta de delegados no interior territorial, alegando que a PM local não tinha condições de “fazer coisa alguma”, pois fora denunciada à Justiça por abuso de autoridade. E enviava semelhante pedido ao então presidente da República, Ernesto Geisel.

Jornalistas “culpados”

SNI boicotava jornais que denunciavam a realidade amazônica, entre os quais, A Notícia de Manaus, Correio da Imprensa de Cuiabá e A Tribuna de Porto Velho 

 

Em 1979 o coordenador regional do Incra, Bernardes Martins Lindoso, impunha censura econômica ao jornal A Tribuna. Nenhum edital ou publicidade institucional da autarquia seriam publicados durante dois meses.

Era a represália motivada por reportagens que mostravam dificuldades enfrentadas por famílias assentadas nos projetos Gy-Paraná e Riachuelo, e noutras glebas de terras.

O diretor-responsável pelo jornal era o advogado Rochilmer Melo da Rocha, que foi membro da Seccional da OAB e mais tarde, chefe da Casa Civil do Governo de Rondônia e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado.

Rochilmer Rocha: pressão do Incra enfrentada com dignidade

Corria nas veias de Rochilmer o sangue do repórter que fora um dia no extinto jornal Correio da Manhã, quando estudava Direito no Rio de Janeiro. E por saber que os olhos do repórter são até hoje insubstituíveis, publicava reportagens mostrando a realidade interiorana. Repórteres de A Tribuna entravam nos projetos e viam o que tinham que ver.

Pouco antes, em meados dos anos 1970, o farmacêutico e jornalista Dionísio Xavier, seu Dió, criticava no jornal A Palavra em Vila Rondônia, sucessivos casos de invasão a terras indígenas e a angústia de famílias sobreviventes abandonadas no meio da floresta. Elas eram vítimas de malária, hepatite e leishmaniose, entre outras doenças.

Jornalista Dionísio Xavier: jornal A Palava teve correspondente em Paris

Seu Dió conhecera “inimigos”, aqueles que não engoliam seus textos, quase todos grileiros de terras públicas. Em 1976 ele presenciou diversos corpos perfurados a bala nas ruas poeirentas, no interior da Gleba Calama, ou então, jogados nas águas do Rio Machado.

Esse clima de terror quase desconhecido da população rondoniense naquele período ia se repetindo, e o próprio Dió foi agredido a socos pelo então administrador de Vila Rondônia, Roberto Geraldo, Jotão. Seus dentes foram quebrados.

Se no território e no Brasil pouca gente sabia do sofrimento do jornalista ao exercer corajosamente seu ofício, Hervé Thery, um jovem professor francês pesquisador da Universidade Sorbonne, visitava a região e quando retornou a Paris mencionou o caso em sua tese a respeito da colonização amazônica.

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Fotos: Assessoria da OABRO, Sindicato dos Jornalistas de MG, Assessoria ALE, Los Angeles Times, Família Dionísio Silveira, Assessoria TCER

 

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