A luta pela terra fez a região sul fervilhar no ano das primeiras eleições no Estado de Rondônia. Em memorável sessão no dia 17 de junho de 1982 o Tribunal de Justiça concedia habeas corpus ao pastor Oto Ramminger, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana; ao assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Olavo Nienow; ao vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Colorado do Oeste, Francisco Cesário da Silva; e aos posseiros José Pedro de Alcântara, José Barbosa dos Santos e Luiz Francisco da Silva. Eles estavam presos incomunicáveis havia um mês, na Penitenciária de Ji-Paraná.
Treze anos antes da Chacina de Corumbiara, ocorrida em 9 de agosto de 1995, a Fazenda Cabixi foi palco de um momento de luta pela terra em Rondônia.
As acusações contra os religiosos, os posseiros e o sindicalista constavam em processo aberto pela secretaria de segurança pública. Segundo as autoridades, todos eles “eram coautores de homicídio num tiroteio entre jagunços e posseiros” numa área litigiosa de terras da Fazenda Cabixi, pretendida pelo consórcio do fazendeiro Agápito Lemos.
Na ocasião, em 4 de maio de 1982, os religiosos e o sindicalista defendiam posseiros na luta por um pedaço dos 66 mil hectares do latifúndio do paulista Agápito Lemos. No confronto com jagunços, um deles morreu. As balas também atingiram mortalmente a mulher de um jagunço.
Com o salão do Tribunal do Júri do Fórum Rui Barbosa lotado, na Praça Marechal Rondon, em Porto Velho, o TJ decidiu por unanimidade libertar os religiosos acusados e por maioria de votos os posseiros.
Em sua argumentação, o então advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Orestes Muniz, alegava que todas as testemunhas do conflito haviam sido ouvidas no dia cinco de maio, 24 horas após a ocorrência do conflito.
Nos autos do processo constava que os posseiros voltaram para suas casas, sem atrapalhar um só momento as instruções do inquérito aberto pela Secretaria de Segurança. Depois disso, mesmo declarando ter moradia fixa no local e profissão definida, eles foram presos.
Coube ao procurador-geral da Justiça, Edson Jorge Badra, emitir o parecer sobre o habeas corpus. Para ele, não havia provas suficientes de culpabilidade das vítimas, que pudesse justificar a prisão. “A prisão preventiva a que todos foram submetidos é uma medida de exceção”, ele escrevia. “Todos são primários, com bons antecedentes, têm profissão e residência fixa”, acrescentava.
Não fosse o trabalho do advogado Orestes Muniz e o relato do procurador Edson Badra, o inquérito da SSP conduziria todos os presos ao enquadramento na Lei de Segurança Nacional. *
Salão do Júri lotado
Aproximadamente 150 pessoas lotaram o Fórum Rui Barbosa, no centro de Porto Velho, onde os desembargadores se reuniram para julgar o caso. Policiais militares, agentes da Polícia Federal e da SSP postaram-se em todos os corredores do prédio, e fora do prédio algumas viaturas estacionaram em pontos estratégicos.
A libertação do pastor Ramminger, Nienow e Cesário fora decidida por unanimidade pelo Tribunal de Justiça. A dos posseiros teve maioria de votos.
Não sem antes haver na Capital um movimento liderado pelos dirigentes do Partido dos Trabalhadores: Odair Cordeiro e José Neumar Morais Silveira. Eles saíram às ruas com outros militantes partidários para pedir a libertação dos religiosos e do sindicalista.
O desembargador César Montenegro, presidente da Câmara Criminal, foi quem determinou a soltura imediata dos presos, ao então juiz da Comarca de Vilhena, Eulélio Muniz, ressalvando, no entanto, que a prisão preventiva poderia ser decretada a qualquer momento. Não aconteceu.
Notável nisso tudo foi o jeito encontrado pelo jornalista mineiro Sidney Martins da Silva — na época correspondente de O Globo em Porto Velho: para ouvir os presos, enquanto eles estavam incomunicáveis no presídio de Ji-Paraná ele acompanhou o advogado Orestes Muniz até a penitenciária. Com óculos de aro redondo, carregando uma Bíblia na mão, ele só saiu de lá no final da visita, tempo em que recolheu importantes depoimentos para sua reportagem. Com mérito, Sidney mostrou ao País o problema fundiário rondoniense.
Chico e Olavo
Cesário da Silva, conhecido por Chico, foi vereador em Colorado. Depois desse episódio, Nienow cursou Agricultura Orgânica e Certificação pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, em 2002; de 2003 a 2007 – quatro anos e cinco meses, e delegado do Ministério do Desenvolvimento Agrário no estado, de 2007 a 2015 – cinco anos. superintendente estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O advogado de defesa foi Orestes Muniz, que mais tarde, no biênio 2004-2006, presidiu a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Rondônia.
Rondônia, partícipe da cultura jurídica nacional
Quarenta e um anos depois, em entrevista a esta série OABRO, 50 anos, ele diz: “Rondônia sempre foi um desafio, e nós enfrentamos alguns.” Lembrou as operações da Polícia Federal no estado e a mobilização da Ordem e sua diretoria “em trabalho muito intenso.” Fruto disso, com a vinda de grandes personagens do Direito nacional ao estado, foi segundo Muniz uma ajuda à atualização dos advogados. E assim Rondônia “participou das novidades do Direito em todos os locais, deixando de ficar um estado atrasado.”
Acrescenta: “Graças a Deus, sempre tivemos uma participação considerável na cultura jurídica do Brasil. Em certa ocasião eu estava em Brasília e um ministro (do STF) me disse o seguinte: Rondônia tem capacidade de produzir peças e jurisprudência importantes para compor as decisões dos tribunais superiores; sempre tivemos advogados de alta capacidade e conhecimento técnico jurídico, e juízes, desembargadores e membros do Ministério Público também.”
“Sem cloroquina e com quibe”
Todo esse tempo passado, também, revela o lado político do promotor aposentado Edson Jorge Badra, que transitou sempre bem-humorado na esquerda brasileira. Ele publicou um vídeo produzido pelo filho, o jornalista e publicitário Alexandre Badra: era um cartaz dizendo que se curou da Covid-19 “sem cloroquina e comendo kibe”, uma iguaria de origem árabe.
Ao som da trilha sonora de “Rocky, o lutador”, Edson Badra simula a saída de um hospital numa cadeira de rodas, ostentando um cartaz, como muitos curados o fazem e publicam nas redes sociais. O cartaz preparado pela neta Carol estampava várias frases alegres e de protesto, inclusive o repetido: “Fora Bolsonaro”.
Badra respondera aos ataques feitos a Luiz Inácio Lula da Silva: “Onde está o dinheiro que ele roubou? O do Bolsonaro eu sei: comprou imóveis com dinheiro vivo, patrimônio sem explicação… e o do Lula?”. “Nesta lista existem programas que foram reformulados/ampliados, mas a grande maioria foi criada nos governos do PT. Esse ódio ao PT é insano”. “Vamos sim e eu seguramente terei ficado do lado certo da história. Não existe idolatria existe reconhecimento. Eu nunca apoiei ou apoiarei um governo que não olha para os mais necessitados.”
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*O texto original da LSN (Lei nº 38) é 4 de abril de 1935. Durante a ditadura militar, as duas primeiras versões da LSN (a de 1967 e a de 1969) implementavam, segundo os juristas, a doutrina de Segurança Nacional influenciada pela Guerra Fria. Nela há uma preocupação acentuada em proteger o Estado contra um “inimigo interno” – no caso do Brasil, naquela conjuntura, pessoas comprometidas em perverter a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. A LSN nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978 manteve os objetivos anteriores, mas em 1978 ela foi tecnicamente mais de jurídica mais branda que as anteriores. A Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 foi promulgada no governo do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo e vigorou até 2021. [Síntese do repórter].
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Fotos: Montezuma Cruz, Igreja Luterana, Álbum de Família
Edição de vídeo: Raíssa Dourado
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