Rondônia, 1 de julho de 2024 – 07:52
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1 de julho de 2024 – 07:52

Advogados antagônicos defendem as mesmas famílias de posseiros de Nova Vida

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Antagônicos no campo político partidário, irmãos no Zodíaco, dois escorpiões, Jerônimo Santana (29 de outubro) e Odacir Soares (31) defenderam nos anos 1975 e 1976 os direitos de posseiros da gleba Nova Vida, na BR-364, até que o Incra venceu uma grande queda de braço com fazendeiros que pretendiam ampliar seus limites naquelas terras. No final, Odacir deixou a causa para seu ferrenho adversário, que já era deputado federal rumo ao segundo mandato.

O então vereador José Viana (MDB), de Ji-Paraná, denunciava em 1977 a situação da gleba Nova Vida, que fica no Km 472 da BR-364, hoje Ariquemes. Acusava o Incra de ameaçar posseiros com sucessivos reassentamentos forçados e de admitir negociatas de terras com primitivos proprietários, dos quais havia sido desapropriada em 1975, por decreto assinado pelo presidente Ernesto Geisel, uma área de 1 milhão de hectares.

O decreto [nº 75.281, de 23 de janeiro daquele ano] declarava de interesse social diversos seringais interligados, formando propriedades conhecidas popularmente por Guarany, Nova Vida, Santa Cruz, Canaã Central, Massangana, Pau D’Arco, Rio Pardo, e São Francisco, todos no município de Porto Velho.

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O histórico de Nova Vida e da gleba Milagres estava transcrito desde 1975 no Cartório de Registro de Imóveis de Porto Velho, na época dirigido por Albino Nascimento. Não eram terras particulares, mas os interessados propalavam o contrário visando unicamente confundir as pessoas.

Desde 1970 a Amazônia era desenhada como a Canaã agrária, a fronteira de terras disponíveis para todos os candidatos a proprietários – opina o jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto, der Belém (PA).

Abril de 1979: Odacir Soares, advogado e líder regional da Aliança Renovadora Nacional [Arena, partido governista], em trabalho conjunto com o advogado José da Silva Pessoa, encaminhava representação [Processo nº 2.286/79] ao Incra, em nome de Cipriano Oliveira e outros colonos.

Tinha duas opções: defender com unhas, dentes e talento no Direito os posseiros, ou passar ao largo da influência do general Plínio Pitaluga, ex-comandante militar em Campo Grande, que estava atrelado ao grupo da agropecuária para influenciar o Incra.

Advogado e mais tarde senador Odacir Soares passou à frente a causa dos posseiros

Nova Vida antes pertencera ao seringalista Emanuel Pontes Pinto, diretor do jornal O Guaporé em Porto Velho, que havia feito acordo com o grupo Gainsa. Afrontando a Lei, Pitaluga passou a utilizar jagunços com armas pesadas para expulsar seringueiros.

Entre 1947 e 1958, período em que passou a investir em atividades pecuárias, de extrativismo vegetal e mineral, Pontes Pinto* assumia a direção daquele jornal nascido criado para defender os interesses do grupo político “cutuba”, ligado aos seguidores do coronel e primeiro governador territorial Aluízio Pinheiro Ferreira.

Em 1978, a Coordenadoria Regional do Incra decidia fazer um acordo com a direção da empresa agropecuária do grupo Arantes [João, Renato e Valter], pelo qual lhe devolveria as áreas Nova Vida e Milagres, com dez mil hectares cada uma.

Ação reivindicatória do grupo Arantes, assinada pelos advogados do Incra, José Sobral Filho e Marlene de Lima Barbosa, pedia o despejo de diversos colonos.

Ao comentar o acordo administrativo celebrado entre o Incra e a Agropecuária Nova Vida, o advogado Odacir Soares manifestava a intenção de anulá-lo. “Ilegal, pois contraria formal e frontalmente o decreto de desapropriação assinado pelo presidente Geisel, que destinou aquelas terras para a reforma agrária”, ele dizia.

Para Odacir, o Incra não tinha competência para mudar a destinação da área, por lhe faltar poderes. “Eu acredito que o juiz de Direito de Porto Velho não poderá homologar esse acordo.” Assim pensava, mas saberia logo depois que era para valer.

Advogado e mais tarde senador Odacir Soares passou à frente a causa dos posseiros

A batata era tão quente que Odacir abandonaria a causa, antes, porém, acusava o governo federal: “A Lei não saiu do papel” – referindo-se à desapropriação social. Ele dava entrevista ao jornal Correio Braziliense, ele mencionava o pagamento do preço da indenização, dizia que o juiz federal expedira mandado de emissão de posse a favor do Incra, que efetivamente imitiu-se e a transcreveu em seu nome.

“A área foi ocupada por milhares de posseiros que nela plantaram: arroz, cacau, café e milho, agrupando-se em pequenas propriedades de cem hectares cada um, tudo sob os olhos e a proteção do Incra”, lembrava Odacir.

O posseiro Aristeu Lucindo e seu irmão Aledino tiveram um entrevero com peões da fazenda, todos sob as ordens de um homem de nome Oscar. Eles foram surrados e levaram tiros. Aristeu morreu depois de ser atendido em um hospital de Manaus (AM), onde se submetera a cirurgia para a retirada dos projéteis.

A viúva de Aristeu, dona Maria Aparecida Lucindo, pediu socorro jurídico ao advogado Agenor Martins de Carvalho. A essa altura, o gado já estava solto nos lotes pretendidos pelos posseiros. Os animais pisotearam lavouras e plantas frutíferas.

Para a surpresa geral, no dia 4 de agosto de 1978, o Incra fazia juntar aos autos do processo os termos de um acordo que celebrava com antigos proprietários, pelo qual lhes devolvia a área de 20 mil hectares, sem considerar que ali viviam centenas de posseiros dedicados à lavoura e à criação de gado, constituindo cerca de seiscentas famílias.

Em entrevista ao jornalista Osmar Silva em 2023, o ex-coordenador regional do Incra Assis Canuto confirmou que os irmãos Arantes discordaram da proposta para liberar antigos seringais em troca dos 12 mil ha de terras.

“Aí ficou difícil de acertar a situação, eles acabaram ficando com quinhentos hectares e depois venderam”, disse Canuto na entrevista.

Naquele período, o Incra publicava editais convocando pessoas que se diziam donas de seringais para apresentar documentos de interesse próprio e do Incra. “Com a discordância, o seringal (Nova Vida) foi invadido, e o Incra não teve como regularizar os 12 mil ha que já estava invadido, e eles nos procuraram para retirar invasores…eu sempre fui e continuo contra invasão de terras, mas não era meu papel para tirar invasor de terras que se diziam particulares”, explicou Canuto.”

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Nessa entrevista revelou algo pouco conhecido: os Arantes teriam cometido o mesmo erro dos irmãos Melhorança, proprietários da Gleba Itaporanga, em Espigão do Oeste. Ou seja: segundo Canuto, os primeiros procuraram o Incra para tratar de seus interesses, pois haviam começado a demarcar lotes de 2 mil ha e vender para outros fazendeiros (de Minas Gerais e São Paulo), mas esbarraram na posição firme do capitão Sílvio. “Colonização privada semelhante à de Espigão do Oeste, que é um capítulo à parte” – assinalou.

“O capitão disse: a Nova Vida tem 22 mil ha titulados pelo (marechal) Rondon, e nós vamos respeitar; agora, os excedentes de 22 mil para 180 mil ha nós vamos colonizar, e onde se deu boa parte do assentamento do Projeto Marechal Dutra e o Projeto Burareiro (ambos sediados em Ariquemes).” Foi, conforme o ex-coordenador, uma discussão acirrada, bastante comprometedora, e no fim, o seu João Arantes, que no começo era um vendedor de terras, passou a ser produtor rural, e nessa condição ele foi muito competente. “Quando ele ficou com os 22 mil ha de Nova Vida que estão lá até hoje ele veio ser um produtor rural de muita qualidade: inovador, trouxe muita tecnologia para Rondônia.

“No entanto, quando ele era apenas explorador de recursos fundiários, comprando seringal para revender, ele encontrou uma resistência muito grande por parte do Incra na pessoa do capitão Sílvio, e por causa daqueles lotes de 2 mil ha que ele vendeu teve que desfazer negócios que não podia honrar”, lembrou.

“E teve um caso interessante em que Torres Homem de Melo, um dos pecuaristas mais tradicionais do Brasil na importação de zebuínos da Índia era vizinho do pai do João Arantes, e dele comprou terras dele no processo Nova Vida. Depois que viu que o negócio não ia prosperar, o Torres chamou o pai do João Arantes e disse: nossos filhos fizeram negócio malfeito lá em Rondônia, e nós vamos desfazer. O seguinte: você vai repassar tantos bois correspondentes ao valor que os meus filhos pagaram; vamos zerar e continuar amigos, e assim foi feito.”

Advogado Jerônimo Santana defendeu posseiros quando deputado federal

Nova Vida possuía 908,8 mil hectares. Apesar de os advogados Odacir e Santana enxergarem a situação jurídica “clara e cristalina”, assistindo aos posseiros o direito líquido e certo de terem a terra ocupada em seus nomes, o sangue correu na gleba.

Jagunços voltaram a rondar ranchos e casas de madeira, e amedrontavam a todos da mesma maneira como fizeram em 1975. Ia por água abaixo o prestígio de Odacir Soares, cansado de interferir na condição de presidente da Arena, o partido do governo.

Enquanto isso, Santana o abraçava a causa com a máxima dedicação em Brasília. E ninguém mais do que ele, pois ainda eram raríssimos os advogados estabelecidos no interior e diante do temor de serem perseguidos por jagunços, nenhum assumia o papel de defensor de posseiros.

Sobrava então essa defesa ao advogado goiano Agenor Martins de Carvalho, que também atuou no Caso Muqui, no bairro Nova Porto Velho, na Capital, e em 1980 foi assassinado.

Os grupos interessados nas terras passavam a acusar Odacir de “mandar os posseiros invadirem Nova Vida e Milagres”, visando a incompatibilizá-lo com o Incra e autoridades governamentais do Território.

Fingiam ignorar que as duas áreas eram totalmente ocupadas havia anos, e àquela altura já não havia mais nada a ser invadido ou ocupado.  “Tola e ingênua acusação”, comentava Santana em momento de sintonia com seu colega de Direito.

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* Pontes Pinto integrou o Conselho Consultivo do Banco da Amazônia S/A (Basa), de 1961 a 1963. Depois, foi suplente de deputado federal pela Arena (Aliança Renovadora Nacional) do Território Federal de Rondônia, exercendo o mandato de 1967 a 1971. Candidato à reeleição em 1970, obteve novamente uma suplência, permanecendo na Câmara dos Deputados até janeiro de 1971, quando expirou seu mandato.

Em 1974 foi nomeado prefeito de Porto Velho e encerrou a vida política no ano seguinte. Em 1979 foi membro do Conselho de Cultura do Território Federal de Rondônia. Em 1986 licenciava-se em História pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, concluindo o mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1992. Deixou diversos livros a respeito de Rondônia e da Amazônia Brasileira.

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Fotos: Reprodução de matéria do autor, na FSP; Alto Madeira, Álbum Familiar e Tudo Rondônia

 

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